A Democracia e as leis da guerra
Nos conceitos de progresso do ser humano que eram correntes quando iniciei minha vida, um dos que pareciam mais sólidos era o de que o homem deixara de ser um animal naturalmente violento para, adquirindo inteligência, organizar-se em paz. A ideia do progresso biológico foi desmentida pela simples aplicação da teoria da evolução, e a sociedade pacífica nunca prevaleceu. Continuávamos, no entanto, pensando que a Humanidade progredia em relação ao sistema de governo, encaminhando-se inexoravelmente para a democracia. Se não é verdade, pelo menos acreditamos que ela é a única forma razoável de Estado. É um problema o sujeito dessa frase. Acreditamos, eu e você e, espero também, a maioria das pessoas.
Assim também pensou Fukuyama que, num livro famoso, disse que no século 20 se chegara ao fim da história, com o domínio da democracia. Hoje a sua sobrevivência é controversa. Ela está sob ataque em todo o mundo. O pior é que o combate é feito usando a liberdade e as garantias que só ela estabelece.
Entre as sínteses de ideias que não podemos esquecer, duas delas se contrapõem e já citei aqui: a de Hobbes, de que o medo da morte violenta forma o Estado; e a de Lênin, invertendo Clauzewitz, que se deve aplicar à política as leis da guerra. Exterminar o adversário.
Em todo o Mundo se vê a aplicação da tese de Lênin e a derrota da fórmula de Hobbes. Por toda parte vemos a violência ser adotada como instrumento da política e os Estados serem usados para incutir o medo da morte violenta.
Esta semana que passou um discurso de Donald Trump mostra como se usa a violência política para a destruição da democracia. Ele subiu o tom de suas ameaças, certamente por estar convencido de que elas agradam a sua base. Prometeu um banho de sangue e o fim das eleições se não for vitorioso na tentativa de voltar à Casa Branca; e, agitando a bandeira do combate à imigração, afirmou que os imigrantes não são humanos, são animais, e devem ser exterminados. Esse tipo de discurso é tudo menos original.
A possibilidade real de os Estados Unidos, com todo o seu poder, tornarem-se uma ditadura de extrema-direita é uma perspectiva que contraria toda a esperança que deposito na democracia. Mas antes mesmo da democracia ser completamente destruída o seu controle pode provocar muitas lágrimas. É o caso do último visitante de Trump, Viktor Orbán, que faz as maiores barbaridades contra seus adversários e contra os imigrantes.
É nesse contexto que acontece a tragédia inaceitável na faixa de Gaza. O Ministro Mauro Vieira falou em atos ilegais e criminosos. Os crimes de guerra foram há muito codificados. Em nenhum caso se pode atacar a população civil. O que aconteceu em Dresden, Hiroshima e Nagasaki está tão barrado quanto os inúmeros e sistemáticos atos dos nazistas contra os civis nos países invadidos, nos países ocupados e na própria Alemanha, quanto a crueldade exacerbada dos japoneses na China, no Sudeste Asiático, nas ilhas do Pacífico.
É inaceitável, por isso, que em Gaza dezenas de milhares de civis — crianças, mulheres — tenham sido mortos, que cidades inteiras tenham sido destruídas, que hospitais sejam atacados, que milhões de palestinos sejam obrigados a peregrinar aterrorizados de um lado para outro do pequeno território, que se impeça essa população de receber alimentos e remédios. Não há barbárie que justifique esta barbárie.
Desapareceram as utopias e estamos num momento de desencanto quanto à marcha da civilização. Mas não morreram os nossos ideais de um mundo mais justo e da vitória final do homem liberto de todas as seduções da violência.