A polêmica
A polêmica
Carlos Rubem
Desde criança, vez outra, lia a coluna “Caderno Anotações”, estampada no Jornal do Piauí, sob a chancela do Professor A. Tito Filho.
Conheci-o, de vista, pela vez primeira, quando veio inaugurar as novas instalações do Grupo Escolar Armando Burlamaqui, em Oeiras. Era o Secretário de Educação e Cultura no governo João Clímaco de Almeida - Joqueira (1970 - 1971). Atrasadíssimo, chegou em visivelmente estado de embriaguez.
Cá esteve depois, em várias oportunidades, para participar, com proeminência, de solenidades promovidas pelo Instituto Histórico de Oeiras. Recebeu homenagem deste sodalício e de toda a cidade.
Nos anos oitenta, passei a frequentar, esporadicamente, a Academia Piauiense de Letras, presidida pelo mencionado Mestre. Recebia-me com muito entusiasmo.
Orientou-me na organização de duas publicações: o livro “Arte e Tormento”, do poeta Nogueira Tapety, obra póstuma e a plaqueta “Centenário de um Mestre”, acerca do Dr. Isaías Coelho.
No 139° aniversário de Teresina (1991), concedeu uma entrevista a TV Club dizendo que Oeiras “não prestava para ser capital do Piauí”.
Naquela noite ao chegar no bar Alto do Xé, uma leva de conterrâneos, sentindo-se ultrajada em seu telurismo, veio discutir comigo aquele pejorativo comentário.
Assentou-se que, no dia seguinte, iríamos passar um telegrama ao dito entrevistado, como de fato foi postado.
Dizia o seguinte: “Interpretando sentimento popular repudiamos seu juízo sobre Oeiras infeliz e debochativa entrevista TV Clube pt Teresina merece nosso respeito pt Oeiras merece também seu respeito pt Vossência talvez não seja digno do respeito que nós lhe conferimos pt Atenciosamente aa) Rossana Ferreira, Manoel Felipe Rêgo, Darcy Filho, Mauro Tapety, Claudete Maria, Raimundo Ba-tista, Celia Carneiro, Inamorato Reis, Carlos Rubem.
Não tardou a explosiva resposta. No dia 23.08.1991, o polemista A. Tito Filho, escreveu um artigo intitulado “Ignorância e Preconceito”, no Jornal O Dia, no qual defendeu-se atacando-nos, raivosamente.
Afirmou que eu era “meio analfabeto sem autoridade moral para julgar quem seja digno de respeito”. “Meus pés, se Deus me ajudar, nunca mais pisarão em Oeiras, onde existem pelo menos alguns débeis mentais”, enfatizou.
Ademais, ameaçou devolver a Medalha do Mérito Brigadeiro Manoel de Sousa Martins que lhe fora conferida pelo I.H.O.
Em seguida, publiquei, no mesmo periódico, uma réplica em que apontava, em suma, que o aludido lente fora injusto ao pronunciar aquela frase, refutei cada ponto controverso. E foram vários.
Embravecido, treplicou. Asseverou, dentre outros argumentos, o seguinte: “Entre os signatários do telegrama de insulto está o promotor de Simplicio Mendes, xingador, e bem poderia, pelo cargo que exerce, proteger a personalidade dos semelhantes. Esse indivíduo de vez em quando me aparecia, para reclamar cooperação, que jamais lhe neguei. Agora mesmo estou com livro que me confiou”.
A cousa tomou ares passionais. Ante ao torvelinho da opinião pública, um espírito de porco quis dirigir-se aos Correios — iniciativa por mim demovida — para endereçar-lhe outro telegrama, nos seguintes termos: “Oeiras perdoa um velho alcoólatra”.
O jornalista Zózimo Tavares esticou a conversa: “Qualquer agressão ao Professor A. Tito Filho é, também, um atentado contra a cultura piauiense, de que é viva expressão. O seu relato sobre a transferência da capital do Piauí de Oeiras para Teresina não pode ser encarado como leviano. Trata-se de fidelidade à história. Além do mais, ele não deve ser levado ao banco dos réus pelo fato contar que Oeiras não prestava há 100 anos ou pelo motivo de Saraiva não gostar da antiga capital. A História deve ser escrita com verdades nuas e cruas, doa em quem doer, pois ela não é feita só de glórias.”
De outra banda, o Conselho Superior do Ministério Público do Piauí, de onde sou egresso, por unanimidade, formulou uma Moção de Desagravo a minha pessoa.
O tempo é o senhor da razão. Na verdade, houve exagero de parte a parte. Nem era preciso dizer que o homem não era digno de respeito, nem era necessário que ele revidasse com quatro pedras na mão a nove jovens injuriados e feridos no seu amor telúrico ao berço de origem.
Dias depois, num mercado de frutas, em Teresina, deparei-me, ocasionalmente, com o referido literato. Abraçarmo-nos, com efusão, como se nada houvesse acontecido.
No início do ano seguinte (1992), garatujei o artigo “Res non verba” (fatos e não palavras) cuidando das mazelas culturais de Oeiras.
Ao tomar conhecimento deste escrito, o multicitado Professor assim se expressou: “Carlos Rubem é um defensor permanente da boa Oeiras e agora faz exortação séria e oportuna numa CARTA ABERTA aos oeirenses, que publico em homenagem à inteligência do autor”.
Antes, porém, José Expedito Rêgo (1928 - 2000) escreveu a crônica “O que seria se não fosse…”, na qual, diante de tantas sábias reflexões, cita o episódio atrás reportado. Vejam:
“Muitas vezes me ponho a imaginar o que seria o mundo hoje, caso alguns fatos históricos tivessem acontecido de maneira diferente. Por exemplo, as batalhas de Maratona ou de Salamina perdidas pelos gregos; Alexandre da Macedônia não morrendo tão jovem, consolidando seu império. Ou Cartago vencendo Roma, o que Anibal deixou de conseguir por inexplicável vacilação.
Sim, como seria? A famosa civilização ocidental sem ter passado pelo fastigio do império Romano. Porque não acredito no destino predeterminado. Creio no acaso.
Naturalmente, o Homem, pela inteligência e poder, infui no próprio destino e nos rumos da história. Sendo que a sorte ou o azar estão metidos nisso. Júlio César, ao transpor o Rubicão, gritou: “A sorte está lançada!” E a vitória de César foi decisiva na história do mundo.
Quando cursava a escola primária, estudei num mapa do Brasil em que, no estado de Goiás, destacavam-se um área retangular, na qual se lia: Futuro Distrito Federal. Juscelino deve ter visto um mapa desses e pensou: Quando eu crescer e for presidente da República, vou mudar a Capital para aqui. E enfiou a unha infantil no pequeno retângulo.
No meu pouco entender a construção de Brasília determinou um desfalque nas finanças públicas que ainda estamos pagando. Mas foi bom para a região do Planalto Central. Constituiu-se num desbravamento comparável ao dos bandeirantes paulistas. Com a diferença que Fernão Dias viajava a pé, a cavalo, penosamente, sujeito a intempérie e dificuldades imensas, enquanto o sorridente mineiro voava na mordida dos aparelhos oficiais.
Numa reunião política acontecida em Oeiras, na década de 60, um ilustre visitante do Sul, vendo exposto numa parede o mapa do Piauí, apontou bem para o centro e indagou: Por que mudaram a Capital daqui para Teresina, quando Juscelino agora fez justamente o contrário, tirou o govemo federal da praia para o interior?
Todos sabemos que as razões de Saraiva foram o isolamento de Oeiras, a falta de comunicação, a distância determinando o descaso do governo imperial. Teresina, às margens do Paraiba, teria melhor acesso fluvial e marítimo, não só ao interior da província, como à Corte, no Rio de.
Janeiro.
Não sei até que ponto isso estava correto. A navegabilidade do rio Parnaíba sempre foi duvidosa e nem o sonhador e obstinado Alberto Silva conseguiu tornar viável o Navio do Sal.
Parece que Saraiva queria fugir ou ficar livre da politiquice reinante na sociedade oeirense da época, que era um entrave à administração pública. Ou quem sabe, até, a vaidade de um jovem governante ambicioso que desejava fundar uma cidade?
O certo é que se a Capital não fosse mudada, Oeiras seria hoje uma cidade grande, de seus setecentos mil habitantes, tendo preservado meIhor o núcleo patrimonial de edifícios históricos, irradiando com mais igualdade e equidistância os braços do poder político. O Sul do Piauí não tinha ficado no esquecimento e no desprezo, nem haveria necessidade da atual proposta de divisão territorial do Estado.
Nem o Professor Tito Filho daria uma entrevista que provocou agressiva reação de um punhado de jovens idealistas e apaixonados pelo torrão natal.”