CINEAS SANTOS E SEUS CAPIVARÕES
Elmar Carvalho
Na reunião deste sábado, na APL, vi o mestre Felipe Mendes, que estava a meu lado, com alguns livros. Não me contive e dei uma boa espiada, logo percebendo um que me chamou a atenção: Figuras na Paisagem Árida, da autoria de Cineas Santos, com excelentes ilustrações de Jota A, que também é o autor da capa e do projeto gráfico. Estava devidamente autografado pelo autor, que havia deixado na secretaria alguns exemplares para alguns acadêmicos. Folheei-o com sofreguidão e me determinei a adquirir um volume, na primeira oportunidade, de preferência logo na segunda-feira.
Ao sair, perguntei à Vera e ao Zilmar, servidores de nossa Academia, se não havia um livro destinado a mim. O Zilmar me desenganou, mas disse que sobrara um exemplar sem autógrafo, que iria me repassar. Foi procurá-lo e me entregou. Quando cheguei a minha residência, li imediatamente a contracapa e a orelha, por sinal de agradável e esclarecedora leitura. Para minha surpresa, vislumbrei uma dedicatória, que, confesso, muito me desagradou, porque eu teria que fazer o livro chegar ao seu destinatário, o que me impediria de tê-lo em minha companhia e biblioteca. Contudo, para meu contentamento, quando li a dedicatória, com a devida atenção, vi que se destinava a mim, e continha estas palavras: “Ao Elmar com a estima do Cineas. Te – 22 – 12 – 23.”
Imediatamente iniciei a leitura do pequeno grande livro, de apenas 133 páginas, em formato 12 x 19 cm. Como o próprio autor esclareceu, a obra não contém biografias de pessoas afamadas e do “alto clero”, mas apenas breves perfis de catingueiros simples, humildes, porém, que foram importantes na paisagem árida de parte da região de Serra da Capivara e, talvez, de Serra das Confusões, acrescento, para dar um toque de poesia, com esse nome tão interessante quanto sugestivo e misterioso, que por sinal se tornou o título de um livro de H. Dobal. Entre suas “figuras”, figuram jogadores do futebol amador, sanfoneiros e outros instrumentistas, boêmios, ébrios, loucos de todos os gêneros, sapateiros, professores, feirantes, mecânicos, biscateiros, pequenos comerciantes, comerciários etc.
Devo dizer que o livro me “agarrou”, e o li de um gole, de uma talagada só. Cineas, sem nenhum favor, é um dos melhores cronistas do Brasil. É um estilista esmerado, com as suas frases curtas, de pouca ou nenhuma adjetivação. Contudo, quando faz uso de adjetivos, o faz de forma parcimoniosa e contida, sem transbordamentos. Devo acrescentar que as suas frases “telegráficas” são fluentes, elegantes, bem construídas, de quem tem domínio de sua linguagem; e não as de quem não as saberia fazer longas, se o desejasse.
Cineas foi um pebolista ou peladeiro; quiçá, nessa atividade, possa ter feito firulas, senão mesmo malabarismos, ou possa ter cometido acrobáticos dribles desconcertantes. Todavia, em sua prosa, prima por um estilo enxuto, sem adiposidades, buscando sempre a concisão e a sobriedade, avesso que o é a firulas e pirotecnias estilísticas. No entanto, vez ou outra, não dispensa uma fina ironia, uma refinada pitada de humor. A despeito disso, não fere a suscetibilidade dos personagens que lhes povoam as crônicas de caráter memorialístico.
É um mestre da crônica, que chamo de memorialística, com algo, talvez, de autoficção, que deriva, como foi o caso do livro em comento, para a lavratura de perfis. Guardou na memória muitos casos engraçados, jocosos, mas, às vezes, pungentes, que nos emocionam bastante. Observador e perspicaz, colocou nesses textos o condimento de um humor algo sofisticado, pela sutileza ou por expressar a característica marcante ou emblemática desses “capivarões de Guidon”, para me apropriar de uma expressão cunhada pelo historiador Fonseca Neto.
Acaso fosse um pintor ou desenhista, diria que ele, em poucas pinceladas ou escassas linhas, traça o retrato dessas figuras, que, de algum modo, foram importantes na paisagem árida das caatingas, desses sertões ressequidos, mas que, como por milagre, reverdecem às primeiras chuvas, borrifando de beleza verde a paisagem cinza ou marrom. Com duas ou três frases certeiras, cirúrgicas, estampa um instantâneo da alma ou mesmo de uma característica física de seus personagens reais, em que lhes delineia os hábitos, cacoetes, idiossincrasias e singularidades.
De modo minimalista relata fatos dessas vidas simples ou humildes, que valem por uma anedota hilariante ou por um conto pungente, que nos comovem e que nos dão uma nítida ideia de como eram essas figuras em seu cotidiano e no dia a dia da comunidade. Em vários momentos me senti como se as conhecesse e tivesse convivido com muitas delas, e até mesmo me senti partícipe do episódio narrado. Às vezes uma frase ou um dito dessas pessoas, na maneira como o autor as colocou no texto, nos parecem revelar o essencial de sua personalidade.
Vários trechos de suas crônicas valem por um legitimo poema em prosa. Muitos períodos parecem ter sido elaborados como um slogan ou como uma frase de efeito, extraídos de uma antologia ou de um dicionário de citações. É que todas as frases foram bem urdidas e bem alinhavadas na composição geral do texto.
O final de quase todas as crônicas, caso fosse de um soneto, seria uma legítima “chave de ouro”. Chave de ouro cravejada com brilhante.
Fonte:https://poetaelmar.blogspot.com/
Foto:Cineas visto por Jota A Fonte: Google