Literatura

Corações de crianças

Corações de crianças

Corações de crianças
Carlos Rubem 

Se Deus quiser, em setembro vindouro, a tia Amália do Espírito Santo Campos estará celebrando o seu centenário de nascimento. 

Não perde a fleuma professoral. Educadora convicta desde os anos quarenta. Mantém interesse sobre a qualidade do ensino em Oeiras, mormente, o fundamental.

Estou à frente — com demais familiares e pessoas amigas — na organização daquela efeméride. — Nada de ostentação!, ressalta a aniversariante.

Lúcida, pediu-me, ou melhor, exigiu que haja dois momentos distintos: um encontro com suas colegas professoras e outro com o alunato. Tem algo a dizer, aguardemos, pois!

Recentemente, andei mexendo em seus pertences. Objetos que lhes são caros. Pretendemos produzir pequeno documentário sobre a sua vida profissional.

Deparei-me com o livro “CORAÇÕES DE CRIANÇAS”, editado pela Livraria Francisco Alves, datado de mil novecentos e carne assada. 

Trata-se de uma coleção de textos de cunho moral adotado nas escolas de antigamente. São reflexões sobre a inveja, preguiça, e demais temas.

No meu curso primário — anos sessenta — havia outra publicação em voga e de forma seriada: Nordeste - linguagem. 

Em criança, li mil vezes CORAÇÕES DE CRIANÇAS, pois tinha acesso à biblioteca da casa do vovô Joel. 

As obras, revistas, seguindo orientações da velha mestra, deveriam ser manuseados com cuidado.

Um texto que me deixava embevecido era “O VELHO MESTRE”, de autoria do escritor René Barreto.

Nele consta um termo — truão — que, à época, não sabia o seu significado. Indaguei a tia Amália. Esta veio me trazer um dicionário para que eu pesquisasse. 

Relendo-o, agora, senti a mesma emoção como dantes, o que proporcionou uma viagem proustiana.

Ei-lo:

Andava muito doente o velho professor.

Por isso ele não tinha agora o mesmo ardor que outrora o possuia e que o animava dantes.
Às vezes, quando em aula, havia mesmo instantes em que inclinava a fronte — aquela fronte austéra onde já desbotara a flor da primavera — e cochilava um pouco, involuntariamente.

O velho professor andava muito doente…

Era, porém, tamanho o bem que nos queria, que jamais quis pedir aposentadoria e manter-se do Estado à custa dessa esmola.

Era sempre o primeiro a aparecer na escola com as suas joviais maneiras simpáticas, não obstante sentir umas dores reumáticas, que o faziam sofrer muito ultimamente.

O velho professor andava muito doente.

Um dia ele chegou mais tarde alguns momentos.

Trazia nas feições sinais de sofrimentos.
A pallidez do rosto, os olhos encovados, denunciavam seus pesares ignorados;
e, como pr'a tornar a dor mais manifesta, cavara-se-lhe fundo uma ruga na testa e franzia-lhe a cara uma expressão de horror.

Andava muito doente o velho professor.

A aula começou. Mas, pouco depois das onze, o velho mestre o bom batalhador de bronze, que já perto de trinta anos, ou mais, havia que, gigantesco herói, lutava dia a dia para a glória da Pátria e para o bem da infância, dando batalha ao vício e combate à ignorância — sentindo de uma dor os agudos abrolhos, curvou as nobres cans, cerrou de leve os olhos.

Fora fulgia o sol. A manhã era calma.
Risonha, a natureza abria a sua alma, repleta de alegria e cheia de esplendores.
Pela janela entrava o hálito das flores.
E em toda a atmosfera, azul, lavada, fina, ressoava, baixinho, assim como em surdina, um canto celestial, harmonioso e suave:
 — Anjos tocando em harpa alguma canção de ave.

Nisto ergueu-se um aluno, um pândego, um peralta, fabricou de um jornal um chapéu de copa alta e bem de vagarinho (oh, que idéa travessa!) chegou-se ao Mestre... zás! enfiou-lho na cabeça, e, rapido, se foi de novo ao seu logar.. O Mestre nem abriu o somnolento olhar.

E, aquele aspecto vil de truão, de improviso rebentou pela aula estardalhante riso.
De súbito surgiu o diretor na sala.
Demudou-se-lhe o gesto, estremeceu-lhe a fala, quando ele, transformando a mansidão de boi em furia de leão, nos perguntou: —Quem foi? Quem foi esse vilão que fez tal bregeirice, sem respeito nenhum às cãs desta velhice?! Vamos lá! Sede leais verdadeiros e francos! Dizei: Quem ofendeu estes cabelos brancos?

Mas ninguem denunciou da brincadeira o autor

E como um «clown», dormia o velho professor.  

O diretor, então, chegou-se junto à mesa.
Via-se-Ihe no rosto o incomodo, a surpresa de que o sono do Mestre assim se prolongasse.
Curvou-se meigamente e levantou-lhe a face...

Mas recuou tremendo, aterrorado, absorto, aniquilado e mudo..

O Mestre estava morto.”